domingo, 26 de agosto de 2012

KORA: A LEI


          Em aty realizado no Tekowa Pu’Aka, na última lua cheia de verão do ano de 51.998, a mboejari Yxapy Rendy colocou para o Awaju a seguinte questão e fez o pedido de que ele fizesse uma exposição dos Kora. A questão:
          Por vezes penso que você acredita em vida após a morte e até mesmo em encarnação, e por outras, como no caso da resposta que você deu para o Angaturã sobre o “Ñemano”, penso que você não acredita na perenidade do espírito, ou, que não tem nenhuma afirmativa sobre o tema, afinal, como você pensa isso?
          A resposta do Awaju:
          - Xerayxy iporã, querida mãe de meus filhos, tudo sei e, nada sei, tudo posso e, nada posso, como na historia da “Arai”, são faces de uma mesma coisa. Sempre que estamos seguros de algo, é momento de autocrítica, porque normalmente estamos seguros tendo teto de vidro em véspera de amandau, de chuva de granizo.
          Esta nossa vida é única, e isso basta. Vivamos conscientes de que cada momento perdido esta perdido para sempre. Nunca mais haverá eu e você e, este momento e, este lugar.
          Agora, antes de abordar a segunda questão que você me propõe, que é a explanação sobre o decálogo, a Kora; queria voltar a um ponto que abordei na reposta ao Angaturã, no “Ñemano”. Porque muitos pensam que a consideração pelo Kora diz respeito a uma compensação futura, em outras vidas, e isso não se dá assim. A consideração ao Kora diz respeito a uma satisfação que provem do âmago de todo nosso ser e, tem relação com a índole de cada um; e isso sim. É determinante com relação a uma vida feliz ou infeliz, aqui e agora.
          No cumprimento do Kora, honro meus ancestrais, rejubilo minha gratidão pelo que tenho, principalmente pelo corpo que herdei; e, pelo que sou como ente humano, pela formação de meu espírito; que são: corpo e espírito, um só. E me congratulo com as futuras gerações, lhes deixando como herança uma vida dedicada ao que posso ser de melhor, para lhes deixar no que esta ao meu alcance, um mundo melhor. Então, cumprir a Kora, para mim, é liberdade e alegria, em um mundo que neste momento não esta respeitando os limites e pondo em risco a vida na “madre tierra”. Num mundo em que o desrespeito à vida tornou-se banalidade cotidiana, e de tão vulgar se tornou imperceptível para muitos que se dizem espiritualizados, ou humanizados. 
          Separar a vida espiritual da vida material, ou falar de iniciados e não iniciados, de eleitos e proscritos, é arbitrariedade e não encontra respaldo na Kora, nas leis da natureza de todos os mundos. Essa divisão normalmente gera grandes desvios do que é ete (verdadeiro e natural). Alguns que se julgam iniciados não passam de patetas, enquanto outros que nunca pretenderam serem espiritualistas ou iniciados como vulgarmente se diz, são levados pela escola da existência a grande realização e, maturidade de ser. Como canta o harpista, muitas das atitudes humanas são apenas “vaidades de vaidades sob o sol”(cf. Eclesiastes 2:11). E, os que mais apontam defeitos no semelhante, e dão conselhos que não são pedidos e, se julgam instrutores dos demais, os “sabe tudo”; são pessoas que mascaram suas carências e deficiências, buscando dessa maneira uma forma de serem notados, mesmo que sendo incômodos e indesejados. Bom, mas vamos ao pedido da exposição do Kora:
          Moxe reuniu nosso povo nas faldas de uma grande montanha, e ali, em torno do Tata Porã, o fogo sagrado, iniciou o aty, a sagrada cerimônia. Era o final da tarde, fim do dia. Tupã brilhava vermelho sobre o vale que descortinava no horizonte. Então Ñamandu se manifestou no fogo no cume da montanha, e chamou o Mboruwyxawete Moxe para junto de si. Nesse aty, face a face falou Emanu com nosso povo, no monte, do meio do fogo. O povo manteve-se nas faldas da montanha, apenas o Mboruwyxawete Moxe subiu ao cume, e Emanu gravou em duas tabuas de pedra a Kora que deu a Moxe (1), para o povo decorar e, não perder da memória. Tudo isso aconteceu em Orewe(2), a montanha onde da chama Ñamandu falou com nosso povo.   
          Observando as duas tabuas, constatamos que na primeira tabua estão quatro preceitos, que tratam de regular a nossa relação com Ñamandu. E, que na segunda tabua, estão os outros seis preceitos, que estabelecem parâmetros para a nossa relação com o próximo. Vou me deter em cada um deles, porém, darei inicio a esta exposição, começando pela segunda tabua.
          É muito oportuno que o primeiro dos preceitos da segunda tabua tenha a ver com a relação entre pais e filhos - 5º mandamento: “Honra teu pai e tua mãe”(3).
          Comentário:
          O povo Ñandewa é um povo de Mboruwyxawete (reis) e de Paje (sacerdotes), e nossos pais são os reis e rainhas, os sacerdotes e as sacerdotisas, de nossas famílias. Devemos cuidar de ser assim, para que tenhamos saúde e longevidade nesta vida e, harmonia e respeito em nossas Oka (casas).  
          O segundo dos preceitos da segunda tabua trata do respeito à vida: 6- “Não matarás”. (20:13)
          Comentário:
          Não matarás implica em não cometermos assassinato sobre nenhum ser vivente, em não cometermos deliberadamente nenhum crime contra a vida: seja contra o reino vegetal, animal ou mineral. Não podemos atentar contra a vida em nosso mundo, porque é contra a nossa vida que atentamos.
          O terceiro preceito da segunda tabua trata do mborayu: 7- “Não adulterarás”. (Êxodo 20:14).
          Comentário:
          O adultério, é em primeiro lugar uma falta a si mesmo; é falta a palavra empenhada, é um insulto a dignidade pessoal.
          O quarto preceito da segunda tabua, diz respeito ao que não nos pertence: 8- “Não furtarás”. (Êxodo 20:15).
          Comentário:
          Não furtarás através de lucro indevido, através de desvio do que não lhe pertence. Não furtarás a criação do próximo, seja ela material ou imaterial. Afinal, não tomarás nada do que não lhe pertença para que a sua alma não se furte; não furtaras o tempo do teu próximo sem lhe retribuir à altura.
          O quinto preceito da segunda tabua, diz respeito à falta com a verdade: 9- “Não
darás falso testemunho”. (20:16).
          Comentário:
          O que mente, mente para si. Então busque a verdade para que você não se torne um simulacro, um arremedo horrendo do que poderia ser belo. 
          Dizem que a mentira tem pernas curtas, porque cedo ou tarde é descoberta. E o primeiro que a descobre normalmente não é o mentiroso. O que dá falso testemunho colhe o fruto em sua própria vida e muitas vezes no fruto de sua vida.
           Temos que ser conseqüentes e ensinar com exemplo: se um pai mente, logo vera que seu filho o imitara.
          O sexto preceito da segunda tabua, o último mandamento de Ñamandu, diz respeito à inveja, ao mal olhado e, uma infinidade de males que assolam as relações humanas: 10- “Não cobiçarás os pertences de outrem”. (20:17).
          Comentário:
          A violação do último dos mandamentos é causa importante de uma quantidade enorme de males que afligem as relações humanas (Tiago 4:1, 2:1. Timóteo 6:10). É normal que possamos tomar pessoas como exemplo, é normal que desejemos progredir como fulano ou cicrano, esse não é o problema; o pecado esta em invejá-los.
          Agora veremos os preceitos da primeira tabua. O primeiro mandamento da Kora, diz respeito á nossa relação direta com Ñamandu: 1- “Não terás outros deuses diante de mim”. (20:3).
          Comentário:
          Todo desvio, tudo que nos separa da realidade, que se interpõe entre nós e Ñamandu, o centro irradiador de toda a vida, é Marã, fator de alienação, de dispersão de nosso foco vital. Os vícios, as manias, a perda de tempo em coisas nocivas ou frutos de mera vaidade ou desejo obsessivo, o engano e a maldade; afinal, qualquer coisa que se interponha entre nos e Ñanderu Papa Tenonde, nosso pai primeiro, último e verdadeiro, é um deus alheio a realidade, portanto, fonte de doença e insanidade.
          O segundo preceito da Kora, diz respeito à idolatria: 2- “Não farás para ti imagens para adorar”. (20:4-6).
          Comentário:
          A humanidade sempre teve uma tendência a fugir da realidade. E, hoje vive grande parte de sua vida, inserido, em um mundo de imagens virtuais. Seus objetos de desejo são automóveis, imóveis de luxo, atores, músicos, jogadores, ídolos cuja imagem é forjada pela mídia. Porém, o problema não esta em se ter um carro, uma casa confortável e bonita, nem em admirar bons atores, bons jogadores e, bons músicos; muito pelo contrário; o pecado esta em ter essas coisas como norteadoras da vida, como motivação para viver; esta em se deixar levar pelas imagens falsas que a mídia cria dessas pessoas e coisas.
          O terceiro preceito da Kora diz do tratar com vulgaridade o santo nome do doador da vida e da morte: 3- “Não tomarás o nome do ijara (senhor), ndee manu (teu Deus), em vão”.
          Comentário:
           Infinidades de pessoas desonram ao Ijara tomando repetidamente seu sagrado nome em conversações vulgares, usando linguagens indignas da espécie humana.
          Veremos agora um preceito que nos ajudará a evitar a desconexão com Ñamandu, com nossa família e com nossa tribo. Esse preceito nos pede que, sejam feitas todas as nossas tarefas, dentro dos seis primeiros dias da lua; e que o sétimo dediquemos para regozijarmos com Ñamandu, em família, com a tribo. Toda a família, todas as pessoas deveriam cooperar na preparação para começar bem o sétimo dia da lua, desde o por do sol do sexto dia.
          O quarto preceito da Kora, diz, para dedicar um dia de cada fase da lua, para rezar no Opy (casa de convergência da aldeia) e, para o descanso em Ñamandu: 4-“ Guarda o sétimo dia para o santificar”.
          Comentário:
          Hoje, o calendário civil é totalmente desvinculado da natureza, tornou-se absolutamente artificial, talvez refletindo a própria vida artificiosa do cidadão contemporâneo; não tem em consideração o ciclo lunar nem os solstícios e equinócios. É triste observarmos, por exemplo: o fato de no hemisfério sul, ser obedecido o calendário do hemisfério norte. O sul inicia o ano no período de contração da natureza, o transcurso se dá de maneira invertida; como um barqueiro que sobe a maré na vazante. Então tudo se torna mais difícil, na lida diária de cada cidadão. A maioria das pessoas não tem a mínima consciência desse fato.
          Há mesmo pessoas de boa fé que, desconhecendo as adulterações feitas por homens trevosos, ou seja, ignorantes da harmonia da natureza, guardam o sétimo dia civil, não se dando conta que essa é apenas uma formalidade. Ñamandu não pede formalidades, pede para que atinemos com a realidade.
          Todos deveriam cooperar na preparação para começar bem o sétimo dia, desde o por do sol do sexto dia. A fim de não estar preocupados pela atenção de coisas secundárias, devemos ter a casa, a roupa, os alimentos, a madeira para o Tata Porã, a erva para o Ka’ayu, o petyn para o fumo, os incensos, etc., desde o sexto dia, que é o dia de preparação (Lucas 23:54). O sétimo dia devemos passar em obras santas. Porém não esquecer que o sétimo dia é o sétimo dia da lua.
          Ver o grande mandamento em: Mateus 22:34-40.
          NOTAS: 
1.Ver Deuteronômio 9:10.
2.Orewe: Montanha onde a Kora foi dada a Moxe (Malaquias 4:4). O monte onde Ñamandu apareceu a Moxe em uma sarça de fogo (Êxodo 3.1). Onde Moxe feriu a rocha e dela emanou água (Êxodo 17:6-7). Monte onde nosso povo permaneceu por largo tempo (Deuteronômio 1:6). Onde Ñamandu admoestou o povo (Deuteronômio 4:10). Em Orewe o grande fogo (Deuteronômio 18:16). Montanha onde Ñamandu falava com os profetas (1Reis 19:8-9). Forma Juruá de escrita: Horebe.
3.Ver Êxodo 20:12.  

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